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Publicado em: 08 Maio 2023

Conteúdos e serviços digitais fornecidos a consumidores: que garantia?

Artigo de opinião de Rute Couto, docente no Mestrado em Práticas Jurídico-Digitais da Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Politécnico do Porto.

Desde 01/01/2022, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro, o fornecimento de conteúdos e serviços digitais passou a ter um regime de “garantia legal” similar ao que existe na compra de bens móveis e imóveis.

Resultado da transposição de duas Diretivas da União Europeia, aprovadas no âmbito da Estratégia para o Mercado Único Digital, o novo regime jurídico aplica-se aos contratos celebrados entre consumidores e profissionais e abrange diferentes categorias de conteúdos e serviços digitais, “designadamente, programas informáticos, aplicações, ficheiros de vídeo, de áudio e de música, jogos digitais, livros eletrónicos e outras publicações eletrónicas, bem como serviços digitais que permitem a criação, o tratamento ou o armazenamento de dados em formato digital ou o acesso aos mesmos, nomeadamente o software enquanto serviço, de que são exemplo a partilha de ficheiros de vídeo e áudio e outro tipo de alojamento de ficheiros, o processamento de texto ou jogos disponibilizados no ambiente de computação em nuvem, bem como as redes sociais” (cf. Diretiva (UE) 2019/770), independentemente da forma de fornecimento, e incluindo as situações em que o consumidor não paga um preço, mas faculta dados pessoais ao fornecedor de tais conteúdos ou serviços.

O profissional está obrigado a fornecer ao consumidor os conteúdos ou serviços digitais objeto do contrato e a fazê-lo em conformidade, ou seja, a cumprir um conjunto de requisitos subjetivos (conforme o que ficou estipulado no contrato) e objetivos (expectáveis em conteúdos ou serviços digitais do mesmo tipo) de conformidade. Fica ainda vinculado a um dever de comunicação e fornecimento das atualizações contratadas ou expectáveis, bem como a garantir uma correta integração dos conteúdos ou serviços no ambiente digital do consumidor, salvo quando tal ambiente não é compatível com os requisitos técnicos dos conteúdos ou serviços digitais e o consumidor foi informado desses requisitos de forma clara e compreensível antes da celebração do contrato.

Os conteúdos ou serviços digitais podem ser fornecidos aos consumidores através de um único ato de fornecimento (ex.: aquisição de um e-book), de uma série de atos individuais de fornecimento (ex.: subscrição de uma publicação periódica eletrónica) ou de forma contínua (ex.: plataformas de streaming). Nas duas primeiras hipóteses, o profissional é responsável por qualquer falta de conformidade que ocorra durante o prazo de 2 anos. Já quando seja estipulado o fornecimento contínuo, essa responsabilidade existe com todo o período durante o qual os conteúdos ou serviços digitais devam ser fornecidos.

No entanto – e isso será um dos aspetos delicados na aplicação deste regime jurídico – esse “prazo de garantia” (ou, de forma mais rigorosa, de responsabilidade do profissional) tem de ser articulado com o que se dispõe em matéria de ónus da prova. O consumidor beneficia de uma “presunção” de que as faltas de conformidade que se manifestem durante a garantia legal existiam no momento do fornecimento, incumbindo ao profissional a prova em contrário. Na hipótese de fornecimento contínuo, quer a responsabilidade do profissional quer este ónus de prova coincidem no período durante o qual devam ser fornecidos – por exemplo, um contrato de armazenagem em nuvem de x anos, ou a adesão por tempo indeterminado a uma plataforma nas redes sociais. Mas quando falamos de um único ato de fornecimento ou uma série de atos individuais de fornecimento, o profissional é responsável durante 2 anos, mas o ónus da prova de que o conteúdo ou serviço digital fornecido estava em conformidade no momento do fornecimento só recai sobre o profissional nas faltas de conformidade que se manifestem durante o prazo de 1 ano a partir do momento do fornecimento. Significa isto que no último ano da “garantia”, o consumidor fica com o ónus de provar que a falta de conformidade se reconduz ao momento do fornecimento e não foi causada por qualquer circunstância superveniente a si imputável. Prova essa que será, naturalmente, técnica e pouco exequível para o consumidor comum.

Em caso de falta de conformidade dos conteúdos ou serviços digitais, o consumidor tem direito à reposição dessa conformidade num prazo razoável, a título gratuito e sem grave inconveniente. Se a reposição da conformidade não for efetuada nestes termos, se for impossível ou impuser ao profissional custos desproporcionados, se a falta de conformidade reaparecer ou ocorrer nova falta ou se a gravidade da falta de conformidade assim o justificar, o consumidor pode escolher entre duas outras soluções: a redução proporcional do preço ou a resolução do contrato, sendo esta última opção viável apenas se a falta de conformidade não for mínima. Esta “hierarquia” nas soluções disponíveis para o consumidor não pode nunca significar a imposição da solução mais conveniente para o profissional, sendo igualmente nulo qualquer acordo ou cláusula contratual pelo qual se excluam ou limitem estes direitos do consumidor, de carácter imperativo.  

Em caso de resolução do contrato, o profissional deve reembolsar o consumidor de todos os montantes pagos (no prazo de 14 dias a contar da data em que foi informado da decisão do consumidor de resolver o contrato e através do mesmo meio de pagamento utilizado pelo consumidor na transação inicial, salvo acordo expresso em contrário) e abster-se de utilizar quaisquer conteúdos facultados ou criados pelo consumidor aquando da utilização dos conteúdos ou serviços digitais fornecidos pelo profissional. Por seu lado, o consumidor deve abster-se de utilizar os conteúdos ou serviços digitais e de os colocar à disposição de terceiros.

Uma última nota para a realidade emergente dos mercados em linha ou “marketplaces”. Quando num mesmo sítio eletrónico ou aplicação explorados pelo profissional, são disponibilizados conteúdos ou serviços digitais fornecidos por outros profissionais, a preocupação do legislador está centrada na transparência. Assim, quando o prestador de mercado em linha atua para fins relacionados com a sua atividade e é “parceiro contratual” do profissional que disponibiliza o bem, é solidariamente responsável, perante o consumidor, pelas faltas de conformidade. Quando não exista esta parceria, o prestador do “marketplace” deve, antes da celebração do contrato, informar os consumidores, de forma clara e inequívoca, de que o contrato será celebrado com outro contratante, da identidade deste e da sua qualidade de profissional (já que, tratando-se de um particular, não se aplica este regime), bem como dos contactos do profissional para efeitos de exercício dos direitos pelo consumidor. Não sendo cumprido este dever especial de informação, o “marketplace” mantém-se solidariamente responsável perante o consumidor.

Esperamos agora que esta harmonização dos direitos contratuais relativamente ao fornecimento de conteúdos e serviços digitais, motivada pela segurança jurídica de consumidores e empresas, seja acompanhada de um efetivo enforcement destas normas. Em nome do elevado nível de proteção dos consumidores imposto pelos Tratados e do pleno crescimento da economia digital europeia.

 

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